terça-feira, 25 de junho de 2019


 ‘O setor ainda é bastante desorganizado’
Marcelo Motta em sua biblioteca pessoal.

            Por Taninos & Afins

            O economista e advogado Marcelo Motta é um empreendedor que mantém seus pés bastante calcados na terra. Diga-se de passagem, que terra! Com larga experiência no mercado financeiro, ou seja, alguém que entende muito de números e do livre mercado, ele – ao lado da mulher, Sônia - transformou uma linda fazenda adquirida na Serra da Mantiqueira há alguns anos, onde possui castanheiras e frutas regionais, numa promissora vinícola: a Fazenda Portal da Luz. Dos 85 hectares do local, 3,5 são dedicados à plantação de uvas para produção de vinho (a vinificação é terceirizada). Ele se beneficia das condições climáticas locais para também realizar a poda invertida para colheita de inverno, com resultados bastante positivos para a uva Syrah. Um amante da boa gastronomia, do vinho, da arte e da natureza, nesta quinta-feira (27), a partir das 9h, ele dará uma palestra no auditório do IFSP São Roque intitulada “O Vinho na Arte”, que, segundo ele conta, surgiu em uma conversa de bar. Ao blog, ele falou de negócios, o que acha do futuro da indústria do vinho brasileira, e não poupou críticas à desorganização da cadeia e à famigerada burocracia. “O burocrata de Brasília acha que o vinho feito em nossa casa é um problema de saúde pública”.

Taninos & Afins - O tema de sua palestra no auditório do IFSP São Roque será "O Vinho na Arte". De onde surgiu essa ideia?
Marcelo Motta - A ideia surgiu de um bate-papo – com vinho, evidentemente – entre mim e um amigo. Discutíamos, como acontece em conversas ‘profundas’ de botequim, quais teriam sido as grandes bebedeiras da história. Mencionei algumas e mostrei quadros que as retratavam, puxados no celular (ainda em 2G) da Wikicommons. Naquela conversa, falamos de pisa, colheita, religião, barricas, tudo documentado com imagens de obras de arte. Ao final, ele sugeriu que eu fizesse um apanhado sobre o vinho na arte para uma confraria de que fazemos parte. Assim nasceu a palestra - hoje já bem diferente da inicial.
T&A - Sua vinícola Fazenda Portal da Luz é uma das pioneiras no ramo de vitivinícola na Serra da Mantiqueira, não é isso? Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória. Antes de embrenhar-se no mundo do vinho, o que o senhor fazia?
MM - Deixe-me começar pelo fim. Sou advogado e economista e tenho um pós-graduação no Brasil em Direito Econômico e um mestrado no exterior em Direito Comparado. Trabalhei 32 anos em um grande grupo financeiro brasileiro, no qual cheguei a ser diretor jurídico, e fui diretor da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e da Abecs (Associação das Empresas Brasileiras de Cartões de Crédito e Serviços). Ainda leciono Ética Corporativa em um conceituado curso de pós-graduação e mantenho minha atividade advocatícia, assim como participo de órgãos colegiados de empresas, especialmente as de uso intensivo de tecnologia. Como se vê, nada ligado a vinho e uva. Em 2002, minha companheira de vida (Sônia Motta) e eu – conhecemo-nos aos 16 anos, em 1974, e estamos juntos até hoje – compramos uma área de terra em São Bento do Sapucaí, bem pertinho de Campos do Jordão (SP). Encantou-nos a paisagem maravilhosa (a propriedade está em frente à Pedra do Baú e foi incluída na obra Vignes et Terroirs – Splendeur des Paysages du Monde, de Joël Rochard) e a existência de restos de reflorestamento de eucaliptos, pinus e cedrinho. Mas recebemos um presente na aquisição: havia uma plantação feita pelo antigo proprietário de castanhas europeias (ou castanhas portuguesas) em produção, ainda hoje responsável por pagar uma parte importante das contas da propriedade. Dedicamos alguns anos a reformas e construções, assim como à melhoria do castanhal (as castanhas, hoje, têm tamanho e dulçor acima da média), e ao desenvolvimento de produtos derivados de castanhas, como doces, farinhas e, agora em fase de testes com diversos desenvolvedores, cerveja. Em meados de 2009, visitamos uma propriedade próxima à nossa, que tinha um hectare plantado de uva para vinho. Ali conhecemos a professora Maritê Dal’Osto (enóloga e professora do IFSP São Roque) – então uma menina entusiasmada, mas, acima de tudo, uma pesquisadora, uma cientista –, que nos explicou a inversão da poda. Fomos atrás do conceito e pareceu-nos viável, embora um pouco louco. Enquanto olhei para o projeto de um modo frio, de possibilidades e vieses técnicos e financeiros, minha mulher olhou com paixão (ela é uma psicóloga que virou chef e fez vários cursos de vinhos). Em outubro de 2010, iniciamos o plantio de nosso vinhedo (acho que a paixão venceu a razão; jamais discutam com bêbados, loucos e apaixonados. risos).
T&A - Por que decidiu investir nessa indústria?
MM - Sempre pensamos em complementar a receita da castanha com algo mais. Chegamos a olhar outras frutas, como atemoia e frutas vermelhas, como possibilidades para formar um mix interessante para a geração de renda e para atração de turistas que gostem da vida rural. Mas, sem dúvida nenhuma, nada se compara à atração gerada por um vinhedo! As pessoas que se interessam por vinho gostam de passear entre as fileiras de uvas, param para admirar os cachos, as plantas e o entorno e perguntam sem parar. Isso não acontece com nosso castanhal ou com o nosso pomar, que, depois de algum tempo, tornam-se desinteressantes para o visitante. À época, quando percebemos a viabilidade técnica da uva para vinho na Mantiqueira, partimos para entender quanto seria necessário dispor para o projeto. Naquele momento, calcular qual seria o retorno do investimento era praticamente impossível – acho que, de certo modo, essa dificuldade permanece. A nossa percepção foi de que o risco era pequeno se comparado com o que um vinhedo pode engendrar. Na pior das hipóteses, o produto seria um vinho ruim, mas uma possibilidade de turismo muito boa. Felizmente, o nosso produto é bom e se casa muito bem com os nossos outros produtos. A nossa próxima fase de investimentos estará focada no enoturismo.
T&A - Há uma brincadeira entre vinhateiros de que a maioria dos que se iniciam nesse segmento começa lionária e se torna milionária" com o passar do tempo, numa alusão de que se perde muito dinheiro nesse ramo de atividade. O senhor concorda?
MM - Não. Vou contar duas histórias. Tenho um conhecido que tentou produzir vinhos no Rio Grande do Sul. Gastou uma fortuna tentando produzir vinho como o da Borgonha. Evidentemente, deu com os burros n’água. Um amigo tenta, faz anos, produzir uvas orgânicas para espumante no Paraná. Vi uma foto do cacho e só posso chamá-lo de um esqueleto com bolinhas (risos). Em ambas as situações, não se respeitaram o ambiente, o terroir, e desconsiderou-se não só a ciência como também o bom senso. Além de tudo, desprezou-se a diversidade. Vinho Borgonha é da Borgonha; no Rio Grande, faz-se outra coisa, com todos os seus méritos. No Paraná, com a adversidade climática, pensar-se na produção orgânica é muito arriscado. Em outras palavras, o que quero dizer é que plantar uva e produzir vinho são, em primeiro lugar, uma atividade econômica, com seus riscos, e, como quase todas, seu exercício tem de estar baseado em técnica e ciência. Se a ciência não for seguida e respeitada, a atividade tem o seu risco agravado. O heroísmo tem hora e lugar; fora deles, é tolice. Eu mesmo tive um sério contratempo: em 12 de novembro de 2016, caiu um granizo devastador em minha região. Perdi toda a minha produção de verão, com exceção de um pouco de Pinot Noir, e tive comprometida minha colheita de inverno de Syrah, cujo resultado foi de apenas pouco mais de duas centenas de garrafas da safra de 2017. Sinto os efeitos do granizo ainda hoje. O que aprendi com isso? Primeiro, granizo daquela intensidade, embora raro, é (ou deveria ser) previsível; segundo, percebi que não havia planejado com atenção o combate e a mitigação dos riscos da atividade. A culpa não foi do clima, mas minha, que não previ o clima ruim e não me planejei para diminuir o risco (por exemplo, antecipando a cobertura habitual). Em resumo, acredito que a atividade é rentável, se usarmos o conhecimento técnico e científico no seu limite e se planejarmos os controles de riscos sem paixão.
T&A - Assim como o senhor, há empreendedores voltando seus olhos para a Mantiqueira, com investimentos, não só em vinho e, mas também em azeite. O senhor acredita que essa região tem potencial para transformar-se numa rota do turismo enológico, a exemplo de São Roque? Se sim, o que o leva a crer nisso?
MM - A Mantiqueira é surpreendente! Além da uva para vinho e da azeitona, há na serra uma produção impressionante de cafés, de diversos tipos e de alta qualidade, frutas, como a atemoia e as vermelhas, a banana prata e o marmelo, a mandioquinha e as castanhas, sem contar a ampla variedade de queijos e doces típicos. Tudo isso gera interesse pelo turismo rural. Mas não se pode esquecer que Campos do Jordão, hoje centro de turismo de estância climática, foi e continua sendo um importante polo atrativo e irradiador de turismo para a região. As cidades vizinhas, como São Bento do Sapucaí, Santo Antônio do Pinhal e Pindamonhangaba, em São Paulo, e Gonçalves e Delfim Moreira, em Minas Gerais, beneficiam-se desse atrativo, oferecendo turismo rural e gastronômico, além daquele voltado aos esportes radicais e típicos de montanha. Mais ainda, tais cidades mantêm o que Campos do Jordão perdeu, ou, de certo modo, nunca teve: a vida campestre. A possibilidade de a região transformar-se também em uma rota de vinhos de alta qualidade propicia uma feliz e rara oportunidade de conjugar-se clima e paisagem à alta enogastronomia. E, mais importante de tudo, é que esta conjugação está por ser desbravada. Os complexos que reúnam clima e paisagem com culturas agrícolas e hospitalidade, folclore e artesanato são ainda raros, quase inexistentes. O potencial, portanto, é extraordinário!
T&A - Sua vinícola já está em produção constante ou o negócio ainda é incipiente?
MM - A minha propriedade está com produção crescente. São um total de 85 hectares, com 3,5 voltados à plantação de uva. A produção sofreu com o granizo de 2016, mas acredito que, com a área que temos plantada hoje, podemos chegar em nosso objetivo de uma produção de 10 mil garrafas por ano em poucos anos.

T&A - Como já mencionado, o senhor tem investido em ciclo invertido em sua propriedade. Financeiramente é viável? Quais qualidades esse tipo de manejo propiciou ao produto final?
MM - É viável, mas os custos têm de ser levados com rédea curta, porque a inversão exige estruturas de cobertura, de adubação e cuidados que, na cultura de verão, não existem. Nós já fizemos vinhos de Syrah, Viognier e Cabernet Sauvignon no ciclo de inverno. Sem dúvida, a mais adaptada ao ciclo invertido é a Syrah, com produtividade bastante animadora e qualidade boa. A Viognier e a Cabernet Sauvignon no ciclo invertido dão produtos excepcionais, mas a quantidade produzida no vinhedo diminui bastante em relação ao ciclo normal. O ciclo de dupla poda contribui para o aumento do teor alcoólico do vinho – ao redor de 14,5% – e para uma estrutura complexa, potente e com adstringência um pouco acima do normal. Falando de percepção (portanto, plenamente subjetiva), e não apenas dos meus vinhos, acredito que os vinhos de colheita de inverno são mais aromáticos do que os “normais”, com acentuação dos aromas secundários (da fermentação).
T&A - Reclama-se muito de que falta união à indústria do vinho nacional. Por exemplo, não há um banco de dados do setor, não há uma federação ou associação que organize informações ou pleiteie políticas governamentais de fomento à cadeia, como vemos em outros segmentos. Por que isso ocorre, na sua avaliação?
MM - É um fato. O setor ainda é desorganizado, bairrista e, não poucas vezes, irracional. Contudo, há projetos em andamento que podem, em um médio ou longo prazo, reverter esta situação. A experiência que tenho com órgãos de classe mostra que o que une entidades lógicas, como são as empresas, são as causas comuns, de modo que elas procurem ser solucionadas em escala, com eficiência e um mínimo de dispêndio de esforço e recursos, em benefício do setor. Uma grande empresa, com muitos donos, acaba sendo gerida de forma que sua governança acomode os conflitos internos, resultando em um vetor de decisão muito próximo do vetor de decisão de sua concorrente direta. Isso não acontece, em geral, na empresa vitivinícola, em sua maioria, familiar. Há um dono, ou uma família, com seus valores e objetivos que, no mais das vezes, são diferentes dos valores e objetivos das empresas concorrentes. A empresa, neste caso, é um prolongamento da personalidade do dono. Por conseguinte, não há causas comuns, que coloquem os vitivinicultores ombro a ombro. O mesmo se dá com as regiões produtivas. O Rio Grande do Sul, por razões óbvias, domina o cenário brasileiro. O Ibravin (Instituto Brasileiro do Vinho), em que pese todo o trabalho desenvolvido em prol do vinho brasileiro, é dominado pelos vitivinicultores gaúchos. São Paulo não tem uma entidade que congregue os produtores paulistas, e apenas um município tem a representação da classe organizada, exatamente São Roque, com o seu importante sindicato. Minas Gerais, como São Paulo, não tem também representação de setor, e por aí vai. Como disse, há algumas coisas em andamento. Existe a recentemente criada Câmara Setorial do Vinho e da Uva no Estado de São Paulo (há também uma federal), mas ela não é uma entidade de produtores, mas sim um fórum de debates e encaminhamento de proposições com o governo do Estado. Já existem algumas conversas para a criação de uma entidade estadual de produtores, sem participação do governo. Vamos ver como isso caminha. Além disso, no ano passado, foi criada a ABDVIN (Associação Brasileira de Direito do Vinho), com sede em Bento Gonçalves (RS), entidade científica voltada para estudos e projetos na área de legislação do vinho. Ela pode vir a ser importante referência para o aperfeiçoamento da legislação nacional sobre o vinho.
T&A - O senhor sentiu ou sente alguma dificuldade, no aspecto burocrático e outros, durante a implantação de seu projeto?
MM - Muitas, mas todas superáveis. Várias das questões dizem respeito à linguagem. Coloque quatro pessoas para conversar: a enóloga, dois proprietários com diferentes formações (um advogado e uma chef, com diferentes jargões) e um capataz que tem de executar o que os outros três determinam, em geral em declarações contraditórias... (como se diz, cachorro que tem muitos donos morre de fome risos). Harmonizar isso tomou tempo. Depois, a experiência da uva é mais complexa que a da castanha ou outras frutas do pomar. A uva é exigente e demanda uma atenção muito maior. É uma fruta muito frágil, muito pouco rústica. É um ser bastante mimado e precisamos nos organizar para dar todo o atendimento que merece. Finalmente, a legislação. O legislador brasileiro, a título de regular as atividades econômicas, costuma produzir as melhores leis do mundo, mas com standards de comportamentos e exigências tão altos que tornam os objetivos da lei impossíveis de serem alcançados. Infelizmente, o normatizador brasileiro raramente trabalha com graduação, com atingir metas e objetivos pouco a pouco. A Lei do Vinho é de 1988, oriunda de um projeto apresentado pelo governo federal no início do governo Sarney; é nítida a influência gaúcha no projeto. A lei não é ruim, mas o Brasil é país que sofre da síndrome do controle. Tudo precisa ser controlado e o exercício da atividade econômica depende de um registro em um órgão qualquer; para esse registro ser realizado, deve-se cumprir tais exigências e requisitos etc. etc. O mundo faz vinho há pelo menos 10 mil anos, mas o burocrata de Brasília acha que o vinho feito em nossa casa é um problema de saúde pública. Não sou contra o registro. Sou contra as exigências prévias, que não permitem ao viticultor transformar-se em vinicultor sem enorme gasto de energia e dinheiro, que pouco agrega na qualidade de seu produto.
T&A - Em relação ao mercado consumidor, os produtores enfrentam basicamente dois desafios: fazer o bebedor de vinho tradicional, que prefere os importados, passar a respeitar o vinho produzido aqui; e tirar o público jovem da cerveja e levá-lo para o vinho. Como, no seu entender, isso pode ser feito?
MM - Separemos os dois públicos. O bebedor de vinhos traz na memória a qualidade do vinho que produzíamos até os anos 1980/90. Reputação ferida é difícil de ser curada. O vinho brasileiro não era bom e o que se fez em 30 anos foi notável. Mas a fama permanece e passa entre gerações e se espalha. Deixar que a qualidade do produto nacional se imponha ao importado é dar murro em ponta de faca, porque o produto estrangeiro também evoluiu/evolui. Para isso, não vejo como resolver a não ser por meio de marketing institucional, de cunho educacional. O problema é que não temos instituição que organize a divulgação, em nível nacional, de que a qualidade do produto brasileiro é, pelo menos, tão boa quanto a do vinho estrangeiro. A isto se acresce a dificuldade tributária, que, de certo modo, beneficia o vinho importado em detrimento do nacional, mas isto é tema para muitos congressos e debates. Quanto aos jovens de hoje, a solução é a mesma, do marketing institucional. Não me parece que seja necessário tirar o público da cerveja, criando-se um ‘maniqueísmo alcoólico’, mas sim mostrar que o vinho, em determinadas circunstâncias, é mais apropriado do que outras bebidas e vira fonte de maior prazer. A juventude é mais ávida pelo hedonismo do que os mais velhos, e uma campanha bem dirigida para a otimização do prazer pode ter bom resultado. Outro ângulo diz respeito ao consumo do vinho em casa, que tem de ser orientado pelo mais velhos. Meu primeiro contato com o vinho foi aos 12 anos, quando meu avô me deu uma taça de vinho com um pouco de água. Isso acontece em lugares onde o consumo de vinho é disseminado como alimento, componente da mesa diária. Mais uma vez, acho que o caminho é o marketing educacional.

Serviço: Para marcar uma visita ao local, basta agendar via celular/WhatsApp: (11) 99616-2623 ou pelo e-mail: Marcelo_motta@uol.com.br

2 comentários:

  1. Parabéns Marcelo Habice da Motta, sucesso!!!!!!!

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  2. Excelente Marcelo! Quem gosta de vinho tem que experimentar os novos vinhos nacionais. Evoluímos muito.

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